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O ouvido "escutante"


“À você, possuidor de um cérebro de aço e uma fria e inquebrantável vontade (garantias de sua influência no século XX, agora e depois), à você eu confesso que não penso mais em termos musicais, ou pelo menos não muito, embora eu acredite com todo meu coração que a Música sempre permanecerá como o mais refinado meio de expressão que temos. É que simplesmente acho as peças – se velhas ou modernas, de qualquer forma é só uma questão de datas – totalmente acometidas de pobreza, manifestando uma falta de habilidade de ver além da mesa de trabalho. Elas cheiram à lâmpada, não à sol... Sinto que, sem descer ao nível das colunas de fofoca ou das novelas, o problema pode ser solucionado de algum modo. Não há necessidade de fazer música para pensar!... Seria suficiente se a música pudesse fazer as pessoas ouvirem...”

- carta de Debussy a Paul Dukas, 1901


Antes do e-mail usava-se o meio epistolar para comunicar-se à distância. Bem antes da geração MySpace, escrevia-se uma missiva com papel e tinta e os nomes de Debussy e Dukas eram famosos na virada do século. Hoje, Claude Debussy pode ser ouvido na cena final do filme 12 Homens e um Segredo (na cena das fontes é Clair de Lune que se ouve ao fundo), e Paul Dukas comparece na melhor seqüência de Fantasia – a mágica se volta contra Mickey ao som de Aprendiz de Feiticeiro.

Dukas baseou-se em uma narrativa de Goethe sobre um jovem feiticeiro que tenta fazer com que vassouras encham baldes d’água, mas o resultado é o feitiço voltando-se contra o feiticeiro. A peça é cheia de humor e virtuosismo orquestral e funciona bem na animação de Disney, em que a direção musical é do maestro Leopold Stokowski.

Debussy construiu sua magnífica obra, chamada de impressionista, criando novos modos de orquestração que revelavam efeitos sonoros originais. Ele não procurava pintar um retrato objetivo do mundo, mas parecia elegantemente sugerir nuances, provocar o imaginário, suscitar atmosferas. A tradução de títulos de suas peças podem revelar sua intenção de retratar algo que escapa ao tato e à visão, aos sentidos mais diretos, enfim, parecendo sempre flutuar no intangível: Nuvens, A Catedral Submersa, Diálogo do vento e do mar, Estampas, Imagens.

A obra desses dois compositores mantém a comunicação com o público contemporâneo, talvez porque o estilo de ambos não está associado ao cerebralismo que Debussy enxergava nas peças de outros colegas. Isto é, ele percebia que as peças de alguns músicos eram pobres porque manifestavam a luz da mesa em que trabalhavam e não a luz do sol ou da lua, estas sim, capazes de revelar um músico imerso em sentimentos e sentidos mais vívidos e mais espontâneos. Essa busca pela expressão de uma imagem poética (romântica?) foi deixada de lado e novos tempos exigiam novas idéias musicais, sendo que nem todas essas novas músicas apreciamos como deveríamos e nem todas são tão boas como se quer que acreditemos.

Há música demais no mundo, hiperabundância de música; quem precisa de tanta música? Por isso, é atualíssima a preocupação de Debussy quanto à tendência de se fazer música para pensar, quando ainda nem se aprendeu a ouvir. Ou, o excesso de música está inibindo a capacidade de ouvir algo além de música.

A seguir, Claire de Lune com arranjo para orquestra de Leopold Stokowski.


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