Pular para o conteúdo principal

os reis do rock e o cristianismo

O cristianismo é um dos fundamentos mais visíveis da construção da sociedade norte-americana. Desde os “Pais Fundadores” até os apelos de George W. Bush e Barack Obama à mentalidade religiosa da maioria da população, as políticas públicas ali têm sido implementadas tendo em vista determinados valores cristãos. A música pop não estaria totalmente alheia a algumas formas bem heterodoxas do pensamento cristão.

Religião e cultura pop no mesmo caldo? No caso da música popular, mais que todas as outras variantes doutrinárias do cristianismo, o pentecostalismo repercutiu na carreira de muito astro pop antes, durante e depois da fama.

E por que o pentecostalismo? De forma bem resumida, pode-se dizer que fatores como a maior liberdade de expressões físicas e espirituais na adoração e a característica de ritual catártico manifesto nos cultos pentecostais favoreceram tanto a consolidação do gospel na religião (entre 1920-1940) quanto na indústria pop (entre 1950-1970). Ou seja, se por um lado, artistas seculares passavam a se congregar em igrejas pentecostais, como foi o caso de Tommy Dorsey, o formatador do gospel no início do século XX, por outro lado, artistas pop, como Ray Charles, apropriavam-se de modelos da canção gospel para dar novo fôlego a sua música.

Em 1954, o grande sucesso de Ray Charles foi "I've Got a Woman". Essa canção é cópia quase fiel da música gospel "It Must Be Jesus", do grupo The Southern Tones. Reza a lenda que Ray Charles ouviu essa música no rádio do ônibus em que viajava com sua banda e imediatamente começou a escrever uma versão junto com o trompetista Renald Richard. As canções são semelhantes, apenas a versão gravada por Ray Charles tem uma levada de rythm and blues, andamento mais acelerado e metais enfáticos. Nascia a "soul music".




De Elvis Presley já são bem conhecidas as gravações de standards da música gospel – "How Great Thou Art" (Quão Grande és Tu) e "He Touched Me" (Cristo tocou-me). Ele também admirava ícones da música gospel, como Jake Hess, de quem Elvis dizia ser um imitador vocal, e o grupo Jordanaires, que fazia backing vocal para o Rei do Rock. Neste álbum duplo, Elvis gravou "Amazing Grace", entre outros clássicos gospel.



No final dos anos 50, Jerry Lee Lewis era um cantor-pianista de formidável talento, cujas origens pentecostais se apagaram diante do enorme sucesso e também após uma infindável lista de polêmicas: envolvimento com drogas, disparos acidentais de arma de fogo, prisões, casamento com a prima menor de idade. Jerry Lee também é primo do telepastor Jimmy Swaggart.
Quando era adolescente, Lewis estudou no Southwest Biblical Institute, de onde foi expulso pela ousadia de fazer uma versão boogie-woogie do hino "My God is Real". Depois desse episódio, a relação de Lewis com a religião foi sempre conturbada.

Little Richard, outro astro do rock dos anos 50, chegou a abandonar a carreira musical e foi estudar num colégio adventista de Oakwood e chegou a auxiliar em campanhas evangelísticas, principalmente contando seu testemunho de ex-roqueiro. Richard deixaria o colégio e passaria muitos anos longe da igreja até dar outra guinada espiritual em sua carreira nos anos 80, quando passou a frequentar a Igreja Adventista e a pregar em diversos lugares [imagem abaixo], inclusive durante seus shows. Richard foi um adventista convicto até o fim da vida, mas este fato só veio à tona de forma mais ampla após sua morte no ano de 2020. Aliás, ele foi sepultado no cemitério da Universidade Adventista de Oakwood.
[Mais sobre Little Richard e o adventismo: http://notanapauta.blogspot.com/2020/05/o-adventista-little-richard.html]

How Little Richard kicked open the doors to rock 'n' roll (opinion ...

Por sua vez, a performance enérgica e atlética de James Brown no palco eram influência das frenéticas performances de pastores pentecostais a que assistiu na infância. Como vários outros de seus colegas da música pop, Brown começou cantando em quartetos na igreja. O animadíssimo show de James Brown era uma cópia da pregação catártica dos pregadores que falavam em línguas incompreensíveis, pulavam, rolavam, cantavam, choravam e gritavam, sendo que a reação tanto da platéia de fãs e quanto da congregação religiosa era sempre no nível da euforia extremada.

O cantor Johnny Cash foi também um artista pop cuja conversão religiosa foi marcada por avanços e recuos. Preso algumas vezes, mas sem cumprir pena na cadeia, e com a carreira sendo destruída pelo vício em anfetaminas e barbitúricos, Cash conseguiria reabilitar-se com a ajuda da esposa June Carter e a decisão pessoal de converter-se ao cristianismo. Ele lançou várias canções de conteúdo cristão bastante direto, como "When the Man Comes Around", cuja letra cita trechos do livro do Apocalipse e faz referência à segunda vinda de Cristo.





No entanto, o cantor voltaria ao vício devido ao abuso de drogas em sua busca por aliviar as dores que sofria em conseqüência de um ferimento no estômago. As contradições que pontuam a carreira de Johnny Cash podem ser observadas numa apresentação ao vivo pela TV em que se recusou a alterar a letra de uma canção com referência ao uso de drogas ("On the Sunday sidewalks / Wishin’, Lord, that I am stoned") e também em sua amizade com o evangelista Billy Graham. Essa amizade o levaria a ser co-autor e narrador de um filme religioso, The Gospel Road. Nos anos 80, Cash lançaria um livro sobre a conversão de Paulo cujo título (The Man in White – O Homem de Branco) era uma paráfrase de seu próprio apelido, The Man in Black (“O Homem de Preto”, referência ao seu figurino nos shows).

Por último, Bob Dylan, considerado um dos maiores letristas da música popular americana. Na década de 60, foi celebrado por suas canções folk, sua voz sem apelos de estrelismo e por suas letras de forte cunho social, longas e poéticas, que narravam a vida do americano comum ora em meio a convulsões sociais e políticas ora às voltas com amores partidos. Na década seguinte, o divórcio após 12 anos de casamento levou Dylan a uma grave crise pessoal e artística, o que teria motivado sua conversão ao cristianismo.

Essa nova fase de Dylan, em que ele se aproximou de músicos gospel e compunha música de temática cristã, não foi bem aceita por fãs e críticos. No começo dos anos 80, Bob Dylan saiu em busca de suas raízes judaicas, o que se refletiria nos novos trabalhos, que retomavam o formato da narrativa pessoal e introspectiva dos seus álbuns de maior sucesso.

É interessante perceber a reação dos fãs e admiradores de um artista que passa pela conversão. Quando um cantor de sucesso está em sua turbulenta busca espiritual, ele é tido como um catalisador das questões existenciais do ser humano. Quando esse mesmo cantor encontra o que aparentemente buscava, seus ouvintes perdem o alto interesse que tinham antes. No mundo da música popular, parece que o sucesso é só para aqueles que cantam como Bono Vox, da banda U2: I still haven’t found what I’m looking for / eu ainda não encontrei o que estou procurando.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n