Pular para o conteúdo principal

lirismo rural e romântico na canção cristã

Houve um tempo em que as imagens de um Brasil rural e ingênuo predominavam na música popular: aquela serra num ranchinho beira-chão, o vento nas palhas do coqueiro, o luar do sertão. O sucesso urbano de canções como Menino da Porteira ou de versos como “ter uma casinha branca de varanda e um quintal e uma janela para ver o sol nascer” indicam que a nostalgia rural é compartilhada por muita gente.

A música cristã mais recente também expressa esse desejo de fuga para o campo. A diferença é que, em vez de “um lugar de mato verde pra plantar e pra colher”, o desejo é encontrar Deus no sertão. Não é ter a companhia de Deus durante a pesca ou ao largo da estrada, mas desfrutar momentos de intimidade e consagração. No campo.

Algumas das letras falam em mergulhar nos rios do coração, outras em passear de mãos dadas com Deus. Atualmente, parece que nem todos se contentam em saber que “além do rio existe um lugar pra mim”. Hoje, a vontade é de mergulhar nesse rio.

Outras canções reúnem a natureza e o romance para comunicar a relação Deus-filhos: "o céu se une à terra como um beijo apaixonado". Ou adotam a linguagem típica de um casal enamorado: "Quero te sentir, quero me envolver, quero te beijar, Senhor"

Na história da arte e da literatura, uma das reações do artista face aos processos de industrialização e violência urbana é a fuga da realidade cruel por meio de músicas e poemas que ressaltam a beleza e a tranquilidade da vida campestre. Certas canções cristãs parecem representar essa necessidade de paz e, culturalmente, a vida no campo é um símbolo de calma e paz.

Alguns poderiam dizer que esse é um modelo poético que denota um tratamento mais íntimo da relação entre Deus e Seus filhos. Mas as letras de algumas dessas canções não estão sinalizando um desejo de relação adocicada e sentimental com Deus?   

Não é difícil notar a reprodução de imagens romantizadas e bucólicas na música cristã, com letras que levam o ouvinte a imaginar o coração divino como um rio, a dar beijos em Cristo e a descrever passeios pelo campo com Deus. Essas metáforas podem ser mera demonstração de intimidade no relacionamento entre o ser humano e Deus. Por outro lado, esse tratamento é uma romantização dessa mesma relação e apresenta até mesmo um excesso de açúcar na linguagem.

Dá a impressão de que alguns compositores não encontraram Deus numa cabana, mas sim num sítio. Não estou aqui para condenar tanto bucolismo, mesmo porque todos têm o direito de manifestar seu sentimento religioso, mas é possível que esse lirismo campestre misturado a expressões típicas do relacionamento conjugal esteja resultando em metáforas de gosto duvidoso. 

Comentários

Anônimo disse…
amigos,
gostaria de mandar sugestões de pautas/eventos culturais p/ o blog. Para qual email devo encaminhar material de divulgação?
grato
Cezanne
cezannedivulgacao@yahoo.com.br

Postagens mais visitadas deste blog

o mito da música que transforma a água

" Música bonita gera cristais de gelo bonitos e música feia gera cristais de gelo feios ". E que tal essa frase? " Palavras boas e positivas geram cristais de gelo bonitos e simétricos ". O autor dessa teoria é o fotógrafo japonês Masaru Emoto (falecido em 2014). Parece difícil alguém com o ensino médio completo acreditar nisso, mas não só existe gente grande acreditando como tem gente usando essas conclusões em palestras sobre música sacra! O experimento de Masaru Emoto consistiu em tocar várias músicas próximo a recipientes com água. Em seguida, a água foi congelada e, com um microscópio, Emoto analisou as moléculas de água. Os cristais de água que "ouviram" música clássica ficaram bonitos e simétricos, ao passo que os cristais de água que "ouviram" música pop eram feios. Não bastasse, Emoto também testou a água falando com ela durante um mês. Ele dizia palavras amorosas e positivas para um recipiente e palavras de ódio e negativas par

paula fernandes e os espíritos compositores

A cantora Paula Fernandes disse em um recente programa de TV que seu processo de composição é, segundo suas palavras, “altamente intuitivo, pra não dizer mediúnico”. Foi a senha para o desapontamento de alguns admiradores da cantora.  Embora suas músicas falem de um amor casto e monogâmico, muitos fãs evangélicos já estão providenciando o tradicional "vou jogar fora no lixo" dos CDs de Paula Fernandes. Parece que a apologia do amor fiel só é bem-vinda quando dita por um conselheiro cristão. Paula foi ao programa Show Business , de João Dória Jr., e se declarou espírita.  Falou ainda que não tem preconceito religioso, “mesmo porque Deus é um só”. Em seguida, ela disse que não compõe sozinha, que às vezes, nas letras de suas canções, ela lê “palavras que não sabe o significado”. O que a cantora quis dizer com "palavras que não sei o significado"? Fiz uma breve varredura nas suas letras e, verificando que o nível léxico dos versos não é de nenhu

Nabucodonosor e a música da Babilônia

Quando visitei o museu arqueológico Paulo Bork (Unasp - EC), vi um tijolo datado de 600 a.C. cuja inscrição em escrita cuneiforme diz: “Eu sou Nabucodonosor, rei de Babilônia, provedor dos templos de Ezágila e Égila e primogênito de Nebupolasar, rei de Babilônia”. Lembrei, então, que nas minhas aulas de história da música costumo mostrar a foto de uma lira de Ur (Ur era uma cidade da região da Mesopotâmia, onde se localizava Babilônia e onde atualmente se localiza o Iraque). Certamente, a lira integrava o corpo de instrumentos da música dos templos durante o reinado de Nabucodonosor. Fig 1: a lira de Ur No sítio arqueológico de Ur (a mesma Ur dos Caldeus citada em textos bíblicos) foram encontradas nove liras e duas harpas, entre as quais, a lira sumeriana, cuja caixa de ressonância é adornada com uma escultura em forma de cabeça bovina. As liras são citadas em um dos cultos oferecidos ao rei Nabucodonosor, conforme relato no livro bíblico de Daniel, capítulo 3. Aliás, n