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ditadura no Brasil: 50 anos, 5 músicas

Para o historiador Eric Hobsbawn, a contestação também é uma forma de patriotismo. Patriotas seriam aqueles que mostram seu amor pelo país desejando renová-lo pela reforma ou pela revolução (Nações e nacionalismos desde 1780).

Mas para a ditadura militar no Brasil, ser patriota significava ficar caladinho diante do regime que não tolerava críticas. 

O golpe militar de 31 de março de 1964 completa 50 anos. Ninguém vai cantar parabéns. Mas para lembrar a resistência político-musical naqueles anos de chumbo, selecionei 5 canções-símbolo (clique nos links para ouvir).


Em 1966, o primeiro prêmio no Festival de Música Popular da Record (na era pré-Edir Macedo) foi dado à “Disparada”, de Geraldo Vandré:

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

O recado da música mal camuflava a crítica ao regime opressor: 
Porque gado a gente marca / Tange, ferra, engorda e mata 
Mas com gente é diferente.

Vandré dividiu o primeiro lugar do festival com prêmio com um futuro contestador, Chico Buarque, autor de "A Banda".

2 – "Pra não dizer que não falei das flores" (Caminhando e cantando)

Dois anos depois, Vandré seria mais explícito e o resto é história e canção:

Nas escolas, nas ruas, campos, nas construções / Somos todos soldados armados ou não.
Vem, vamos embora que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora não espera acontecer

Essa canção tem um verso que fala das flores vencendo os canhões. A ditadura não gostou dessa contrarrevoluçãozinha "paz e amor" e o desconforto na caserna foi publicado na revista Veja ( 9/10/1968): “Essa música é atentadora à soberania do País, um achincalhe às Forças Armadas e não deveria nem mesmo ser inscrita" [no festival de música].

O ano era 1968, ano do fatídico AI-5, que aboliu direitos civis básicos em nome da "segurança nacional". E a canção vencedora do Festival Internacional da Canção (da Rede Globo) foi "Sabiá", de Chico Buarque e Tom Jobim. Mas essa era uma canção de protesto muito enrustida para aquele ano e os intérpretes receberam do público politizado uma vaia tão grande quanto injusta.

No final das contas, Vandré sumiu do mapa e quando voltou, negando protesto político, levou o povo a dar vazão a todas as teorias conspiratórias de costume. Ele quebrou o silêncio décadas depois numa entrevista à GloboNews.


É claro que o regime militar dava preferência a canções “patrióticas” como "Eu te amo, meu Brasil":

As praias do Brasil ensolaradas 
O chão onde o país se elevou 
A mão de Deus abençoou 
Mulher que nasce aqui tem muito mais amor.

O ufanismo é coisa exagerada e fantasiosa: Mulher aqui tem mais amor do que na Espanha? O sol brilha mais aqui do que no Egito? Fortalecia-se o mito do Brasil que “vai pra frente”, de uma gente “guerreira”, de uma natureza abençoada. E ainda obrigavam a gente inocente cantar isso na escola. 


Chico Buarque foi o cantor mais vigiado pelo regime. Quando o disco chegou à lojas e essa canção começou a tocar nas rádios, Chico foi “convidado” a explicar para os militares o que ele estava querendo dizer com versos como:

Hoje você é quem manda, falou tá falado / Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda falando de lado / e olhando pro chão, viu

ou

Você que inventou a tristeza / ora, tenha a fineza de desinventar
Você vai pagar e é dobrado / cada lágrima rolada nesse meu penar
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...

Chico disse que não tinha nada de político nessa canção, que falava de uma mulher muito má que lhe abandonara. Por mais esfarrapada que pareça, os censores acreditaram e liberaram o autor e a música. Não demorou e a ficha caiu (era mesmo o tempo da ficha telefônica), mandaram recolher os discos das lojas e a canção não tocou mais na rádio.

Chico foi proibido de cantar essa música nos shows e começou a ter dificuldades para gravar. Por algum tempo, ele teve que gravar ou compor com o codinome Julinho da Adelaide, pois nada do que ele escrevia era liberado pela censura.

5 – "Cálice"

Chico rides again! Em 1973, durante um evento realizado pela PolyGram, Chico e Gilberto Gil decidiram cantar uma canção previamente censurada, "Cálice". O refrão diz:

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
de vinho tinto de sangue

A referência à angústia de Jesus no Getsêmani era apenas de superfície, na escrita. Na fala, o "cálice" soava também como "cale-se". A referência era à angústia do artista e do intelectual, tesourados, amordaçados, silenciados.


Quando Gil canta a melodia da música com uma letra qualquer e Chico vai dizendo "cálice" (cale-se), os microfones começam a ser desligados (a presença de um censor nos shows era praxe). Ironia das ironias, ambos iam sendo tragicomicamente "calados".

Há muitas histórias e canções proibidas e censuradas, muito mais cantores que não aceitaram facilmente o "cale-se". Pra citar outra canção de Chico Buarque (Vai Passar), isso tudo faz parte de uma "página infeliz da nossa história / passagem desbotada da memória / das nossas novas gerações".

Comentários

Alysson Oliveira disse…


acho muito bonita a maneira como a arte consegue expressar, moldar e mudar uma sociedade. acho também que o Chico é uma cara que soube usar essa potencialidade como poucos conseguiram. acho ainda que a música "Construção", do Chico mesmo, merecia uma menção no post. mas só acho.

belo texto, pra variar. rs

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