Por que os filmes só mostram cristãos fanáticos?,
me perguntou um amigo. Acho que pela mesma razão pela qual os filmes evangélicos só
mostram ateus arrogantes: a necessidade de estereótipos, foi minha
resposta.
Do mesmo modo que o cinema evangélico parece desconhecer a
existência de vida feliz e digna entre ateus, o cinema hollywoodiano faz pouco caso
da existência de vida inteligente e sensata entre cristãos.
Por isso, a raridade de um filme como A Força do Carinho (Tender
Mercies), dirigido por Bruce Beresford e com roteiro premiado de Horton Foote.
No filme, o grande Robert Duvall, em papel ganhador de um Oscar de melhor ator,
vive um cantor country que não quer mais saber dos tempos de fama. Suas
lembranças dessa época lhe trazem a amargura do alcoolismo, do divórcio e da
perda de contato com a filha.
Ele vai parar num posto de gasolina de beira de estrada onde
pede trabalho e teto para a proprietária, uma viúva que mora com o filho
pequeno. Ali, anônimo e sem ilusões, Mac vai buscar a regeneração. Apesar de a história prever todos os clichês de superação e
felicidade total, o filme não envereda por essas falsas expectativas. A
história transcorre com calma, com poucos momentos de turbulência, como que
acompanhando a conscientização do ex-cantor de sua nova vida.
E que papel o cristianismo desempenha na história?
Primeiro, há somente lampejos de cultos e devoção pessoal,
mas o filme mostra uma igreja pacata, amistosa e
bastante musical. Aliás, Rosa Lee canta no coral da igreja. Ela perdeu o marido
na guerra do Vietnã, ele perdeu a esposa para si mesmo em sua guerra
particular. A combinação da serenidade religiosa de Rosa Lee com a apresentação
musical dela parece tocar Mac Sledge, que vai pedir Rosa Lee em casamento.
Em segundo lugar, Mac percebe que, para mudar completamente
de vida e permanecer ao lado da viúva Rosa Lee, ele terá de entender e
participar da vida religiosa daquela família.
Quando os personagens oram, eles agradecem pela vida que têm
e pedem orientação espiritual para solucionar os problemas da vida. E eis aqui
um diferencial desse filme em sua relação com a fé cristã: os personagens não
são ridicularizados e nem tudo se resolve do jeito que eles esperam.
Até mesmo uma surpreendente cena de batismo é mostrada com
respeito. Na volta pra casa após ser batizado, Sonny, o filho de Rosa Lee, diz
que não está sentindo nenhuma mudança interior. Ele pergunta se vai
experimentar esse sentimento. Mac sorri e diz: “Provavelmente, sim”.
Aliás, Sonny não é retratado com uma daquelas crianças de
cinema que fala como adulto. Suas falas tem a astúcia e a surpresa das perguntas
infantis.
Em terceiro lugar, o cristianismo comparece no título original Tender Mercies, uma expressão traduzida no Salmo 145:9 como "ternas misericórdias": O Senhor é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras.
O filme evita o tom de pregação de regeneração pessoal do
mesmo modo que evita cair no sentimentalismo romântico. Rosa Lee não se intromete no passado que teima em reaparecer
na vida do marido. Ela se interessa genuinamente por ele, mas não o força a
nada. Sua noção de que “o amor é paciente” se expressa em tons suaves de paixão
e compaixão. São essas atitudes de terna misericórdia que fazem Mac agradecer por ter conhecido Rosa Lee. É o que
vai lhe inspirar a procurar pela filha. É o que o motiva a dar tempo e atenção
ao enteado Sonny.
Rosa Lee surge na vida de Mac como um tipo de anjo acolhedor, mas também não deixa de ser uma representação humana de Deus, dando abrigo ao perturbado cantor com suas atitudes firmes, gentis e serenas. É a encenação de um amor que não se encontra nos estereótipos humanos de amor. Como diz uma canção de Jader Santos: "O amor pode ser bonito, sincero e genuíno / mas o amor tem que ser divino pra ser amor".
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